[ENTREVISTA] Maria Collier de Mendonça entrevista o psicanalista Pedro De Santi

GTY_teens_leaving_facebook_lpl_131031_33x16_1600

(Entrevista originalmente publicada no blog Sociotramas. Maria Collier de Mendonça foi planner em agências e atualmente é consultora e professora na pós-gradução da PUC-SP.)


Entrevista: Pedro De Santi, psicanalista

Pedro de Santi é psicanalista e professor da ESPM-SP e COGEAE/PUC-SP. Doutor em Psicologia Clínica (PUC-SP), escreveu os livros “Desejo e Adição nas Relações de Consumo” (2011), “A Construção do Eu na Modernidade” (2005) e “A Crítica ao Eu na Modernidade em Montaigne e Freud” (2003).

Maria: Como podemos abordar a ideia do “eu adolescente”, com base na perspectiva psicanalítica, levando em conta a convivência e as produções de subjetividades e identidades adolescentes nas redes sociais digitais?

Pedro: A adolescência talvez seja o momento mais próximo em que podemos ter a experiência do corpo despedaçado (no modelo do Estádio do Espelho de Lacan, o Real). Sobretudo no ano do estirão, quando crescem muito fisicamente. Nossa representação corporal não acompanha braços e pernas; por isso, o adolescente é — muitas vezes — desengonçado. O Realtambém manda recado pelas excitações tremendas que dele afluem. No melhor sentido freudiano, as velhas fantasias recebem um afluxo pulsional que dão a elas uma dimensão que não tinham no mundo infantil. Erotização e terror.

Provavelmente, o campo representativo também não dá conta do montante de excitações, o que vaza sob a forma de angústia. Espremido entre a identidade infantil na qual não se reconhece mais, o anseio para achar um lugar para si e a demanda para que já responda a questões que ainda não se fez (definição de gênero e profissional, por exemplo), o adolescente é convidado a transgredir (como escreveu Calligaris, 2009) e até poder ouvir dos pais: “Não foi isto que eu sonhei para você”.

As mídias sociais são um campo muito rico para a exploração de si para além do controle dos pais, conhecimento do mundo, busca por pertinência em grupos e, sobretudo, para a criação de um eu sem corpo. Todo eu é campo do corpo erógeno e da representação, mas claramente isto vai ao extremo nas relações virtuais. Para muitos jovens deslocados e desadaptados em seus meios sociais imediatos, as mídias sociais são o lugar no qual sua nova identidade se dá.

Temos ainda acompanhado uma contrapartida interessante, para quem pense que as mídias sociais são apenas hipnotizantes e alienantes. De 2000 para cá, há todo um contingente de jovens no mundo inteiro redescobrindo a política e a ocupação física dos espaços públicos (das manifestações aos blocos de carnaval). Com isto, subvertem o sistema político tradicional e mesmo o jornalismo tradicional, uma vez que não dependemos mais daqueles meios para termos informação ou acesso a nada.

O controle social é menor onde cada um porta um instrumento capaz de fazer imagens e transmitir informações em tempo real. E lá que eles estão com seus corpos físicos. Em suma, as mídias sociais formatam a experiência dentro de suas características, mas levam adiante características já intrínsecas à formação do eu. Nem todo adolescente é criador de conteúdo, como sugerem algumas definições marqueteiras desta geração. Mas sim, muitos encontram nas mídias sociais recursos de expressão e autoria.

Uma forma de compreender o papel do “curtir, comentar, compartilhar” é pensar no lugar do outro, na experiência humana. Somos seres relacionais e sempre referidos a um outro. Ainda que de forma esquemática, podemos dizer que em sociedades tradicionais (como a Idade Média Ocidental) o outro é um só para todos e transcendente (Deus, naturalmente). Mas, numa sociedade de sujeitos individualizados, como é (ou foi) a Modernidade Ocidental, o outro é interiorizado e privatizado na figura de um super-eu, no papel de auto-observação e vigia. Como diz a psicanalista carioca Marta Rezende Cardoso; o super-eu é uma dimensãopsicótica (persecutória) dentro de um neurótico.

No mundo contemporâneo, o outro parece ter sido exteriorizado no anseio desesperado por reconhecimento dos nossos posts e selfies. Com isto, certamente há um empobrecimento da interioridade e a criação de novas formas de existência em coletivos e comunidades, nas quais a singularidade do sujeito pode ser diluída numa identidade de grupo (gênero, raça, opção política, etc.).

Maria: O cenário midiático atual também envolve o culto às celebridades, a cultura de consumo e as diluições das fronteiras entre o público e o privado na convivência online. Como a psicanálise pode ajudar os adolescentes a negociarem com estas pressões midiático-culturais?

Pedro: O consumo não é um problema em si. Consumir é parte intrínseca a toda manutenção da vida. E objetos de consumo podem ser escolhas entre outras num universo desejante neurótico. Acho importante a leitura psicanalítica não “moralizar” o prazer do consumo; não há objetos naturais para o desejo humano, que pode circular também entre objetos de consumo.

Há outra dinâmica estimulada pela cultura contemporânea, que é aditiva, na qual o consumo pode ser uma realização extrema. Entre os excessos de estimulação e conexão e os vazios de relação íntima, a cultura atual estimula relações aditivas com substâncias, pessoas, tecnologias e, é claro, também o consumo. Diferente da dinâmica “normal” neurótica, nas relações aditivas, encontramos um buraco mais embaixo de sofrimento e desespero que merecem nossa atenção social e clínica.

Maria: o psicanalista Contardo Calligaris (2009) lê os significados atribuídos à adolescência na contemporaneidade como um ideal de liberdade, independência e insubordinação possivelmente almejado pelos adultos, porque os jovens podem desfrutar de alguns prazeres adultos, mas ainda não precisam se preocupar com obrigações e dificuldades da vida adulta. O que podemos observar no cenário das redes sociais, quando a aspiração dos adultos é rejuvenescer?

Pedro: A adolescência é uma invenção da Modernidade Ocidental, diferente da puberdade, cujo caráter é mais biológico. Sociedades tradicionais desconhecem a adolescência: em dado momento, num ritual coletivo, a criança passa a ser um adulto.

A adolescência é um “lugar nenhum”, uma negatividade aberta pela individualização da vida e enfraquecimento dos laços sociais. Adolescente é alguém em crescimento; adulto é alguém crescido, pronto. Não é difícil perceber que, no mundo contemporâneo, o que está em falta é o elemento adulto. Tornamo-nos quase todos adolescentes, em constante crise e processo de busca por nós mesmos.

O adulto vê no adolescente beleza (carnes duras), liberdade e potencial para ser ainda tudo; ele não se lembra da angústia pela qual passou. É uma idealização de quem se vê preso a compromissos profissionais e familiares; e vê seu corpo começando a envelhecer.

Maria: Por último, alguns autores abordam a questão dos adolescentes nas redes de uma maneira tendencialmente positiva — Danah Boyd é uma delas. Outros estudiosos e até produções cinematográficas hollywoodianas (ex: filme Confiar) tendem a destacar sobretudo os riscos que a convivência dos jovens online pode acarretar (cyberbulling, assédio virtual). Que conselho ou palavras finais você poderia dar a pais de adolescentes, leitores deste post, considerando sua experiência como psicanalista, professor e pai?

Pedro: Sem dúvida, precisamos todos nos educar para este campo crescente de experiência. E ajudar crianças e jovens a se educarem também. Sobretudo, acho que devemos distinguir pensamento crítico de recusa. Precisamos pensar criticamente sobre todas as realidades que se apresentem, mas sem uma visão “decadentista”, segundo a qual o mundo está acabando, os jovens estão perdidos, antigamente as pessoas liam mais, ou qualquer coisa assim. Cada geração vê o que lhe segue sob o signo da decadência pelo simples fato de não se reconhecernarcisicamente nela. “Como eu não vejo sentido no que o outro faz, presumo que seja algo sem sentido”. Esta costuma ser a reação adulto ante o adolescente.

Para terminar, duas referências a um livro ótimo chamado “O Blackberry de Hamlet”, (Alaúde, 2011) de William Powers. Nele, o autor estuda como reagimos ao longo da história a inovações tecnológicas. Uma das ótimas histórias que conta diz respeito aos livros. Hoje, lamentamos profundamente que os jovens leiam pouco e se percam em seus smartphones. Ele conta que há 3000 anos, o livro foi visto como um vilão que levaria à decadência da humanidade. Algo como: “se as pessoas vão registrar tudo em livros, deixarão de usar suas memórias”. O herói de hoje já foi o vilão, um dia. E, sejamos sinceros, se tivéssemos tablets em nossas infâncias e juventudes, certamente não teríamos lido o quanto lemos.

Powers conclui de uma forma simples, mas que ajuda a distinguir uma relação neurótica de uma aditiva, no uso da tecnologia e conectividade. Usa bem a tecnologia quem é capaz de, de vez em quando, desligá-la. Parece singelo, mas estabelece um critério tangível para sabermos se a tecnologia está a nosso serviço ou nos tornamos dependentes dela.