[ARTIGO] Cannes Creative Strategy: o que é, o que premia, e como se preparar para os próximos anos.

Em 2019, Cannes inaugurou uma nova categoria: Creative Strategy. Essa novidade chamou a atenção de vários planejadores. Mas, com a empolgação, também vieram várias dúvidas: O que a categoria premia? Que tipo de trabalho inscrever? Como inscrever?

Para responder essas e outras dúvidas e ajudar no desempenho do Brasil (não tivemos nem um shortlist na categoria), o Grupo de Planejamento preparou esse material. Nas últimas semanas, Vitor Amos, Diretor-geral de Planejamento da Africa, e Diego Dumont, Regional Brand Strategy & Creative Director da Mondelez, mergulharam nos cases premiados em Creative Strategy em 2019 e bateram um papo com Amanda Feve, CSO & Partner da Anomaly de Amsterdam e jurada da categoria, para fazer um debrief completo. O resultado desse trabalho você confere abaixo.

#1 Creative Strategy: uma categoria que celebra a estratégia transformadora além da comunicação.

O Festival de Cannes define a Creative Strategy como a categoria que celebra a “ideia por trás da ideia”. Podemos entender isso como uma celebração de grandes insights estratégicos, onde a inovação aconteceu antes mesmo de chegarmos à criação. O que está em jogo não é somente a execução criativa, mas sim o pensamento estratégico que gerou uma execução primorosa. 

Os princípios de estratégia e criatividade parecem caminhar para uma convergência como nunca se viu antes, seja porque chegamos em um momento da indústria onde estamos todos procurando por novas maneiras de estabelecer novas bases para o crescimento de marcas e negócios a partir de novos olhares e soluções criativas, ou seja porque a nova geração  de profissionais e consumidores demandam um rompimento com o pensamento convencional, linear e departamental da publicidade e do marketing clássico.

Se o Jay Chiat é sobre a excelência do pensamento estratégico, Creative Strategy Lions é sobre o ineditismo da estratégia e o impacto dessa nova forma de pensar em ações práticas na cultura e na sociedade.

Mas engana-se quem pensa que a categoria se limita a comunicação. Em 2019 a categoria celebrou ideias de propaganda, produtos e modelos de negócio. Amanda Feve, jurada da categoria, nos contou o motivo:

“Cannes o define como a ideia por trás da ideia, mas a maneira como realmente traduzimos no júri foram estratégias que tinham o potencial de criar soluções inovadoras, independentemente de se tratar de soluções de publicidade, negócios ou produtos”.

Tesco – Unforgettable Bags

Tesco é um desses grandes exemplos que transcendem uma peça publicitária de ativação e levou prata na categoria com o case “Unforgettable Bags”, justamente por impactar uma cadeia muito maior que sua relação com o consumidor. 

Um insight de UX a respeito de comportamento de compra, traduzido em design de um novo produto respeitando esses aprendizados, somado a benefícios que qualquer outra marca poderia oferecer para o consumidor através de um clube de fidelidade. 

Ao mesmo tempo que a marca ativa uma plataforma de relacionamento, ela constrói uma reputação e conexão com seus consumidores em outras esferas.

NRMA – Safety Hub

A seguradora australiana NRMA também se destacou ao subverter a lógica das empresas de seguros que pautam sua comunicação na parte dos danos e  pagam seus prêmios somente após o desastre acontecer. Nesse caso a seguradora passou a remunerar gradativamente as pessoas que cumpriam com os diferentes requisitos básicos de segurança que são comprovadamente os maiores causadores de possíveis acidentes.

Como funcionam os pesos e filtros de avaliação dentro das inscrições?

Quatro parâmetros de avaliação guiam especificamente a inscrição dessa categoria (desafio, insight, ideia criativa e resultados) e elas só reforçam o papel que se espera de um planejador para os próximos anos (ao menos o reconhecimento da sua contribuição a criatividade do trabalho final). 

A “interpretação do desafio”, em outras palavras coloca um spot em cima do refinamento e precisão que um bom brief tem de provocar e catalisar esforços em torno de um problema a ser resolvido. Seja dentro da agência, cursos externos ou nas conferências de classe que participamos, aprendemos que o poder de obter excelente respostas, mora no ato de se fazer excepcionais perguntas. Esse mantra tão celebrado na nossa profissão, parece ser levado muito a sério na hora de avaliar os casos que fizeram diferença nessa categoria. 30% da pontuação é atribuída a esse parâmetro. 

O “Insight/Pensamento Inovador”, ou um novo jeito de olhar para um problema conhecido. Colocar a prova tradicionais posicionamentos ou categorias com drives já estabelecidos a tensões socioculturais que impactam diretamente seu modelo de negócio ou jeito de oferecer um novo produto pode ser muito mais relevante do que continuar falando obviedades ou simplesmente levantar uma bandeira em torno de uma causa sem conexão alguma com a natureza de sua categoria. Esse skill importantíssimo e cada vez mais raro de se encontrar nas pessoas, a arte de ligar o “lé com cré” de um jeito contemporâneo, provocativo e distintivo é a outra perna de avaliação que mais trará louros para o seu case.

A “ideia criativa” originada a partir desse trabalho de interpretação estratégica é responsável por 20% da pontuação total de um case nessa categoria. Aqui realmente é onde enxergamos com clareza o que foi colocado na rua ou trazido a vida depois de tantos pensamentos, análises, mãos no queixo e coçadas na sobrancelha. Lembrando que apesar da execução não ser o maior parâmetro de avaliação, ela ainda segue sendo importante. Afinal é ela a expressão máxima da tradução do pensamento estratégico em matéria-prima de conexão com as pessoas. Sem uma ideia criativa afinada e a altura de uma estratégia reconhecida por sua excelência, nos resta apenas a boa vontade manifestada em documentos e cabeças brilhantes. O nome “estratégia criativa” nunca pareceu fazer tanto sentido.

Por último e não menos importante vem os “resultados”. Existem resultados e resultados quando olhamos para essa categoria. A primeira definição de resultados parece se tratar do mais óbvio e esperado quanto ao alcance. São métricas mais tangíveis de venda, crescimento, participação, mídia e engajamento. A segunda e menos óbvia definição em torno dos resultados diz a respeito sobre a ideia de legado e impacto. São reflexões em torno de repercussão sócio cultural que essa ideia trouxe em mudanças de comportamento de uma comunidade. Essa segunda definição parece ser mais interessante de ser abordada, sem anular a existência da primeira. A combinação de ambas irá garantir os 20% finais no critério de avaliação. 

#2 De estrategista para estrategista.

Quando pedimos para as pessoas nos mandarem as dúvidas que elas tinham sobre a categoria, muitas delas queriam saber até que ponto esse é um prêmio sobre criatividade ou sobre estratégia.

Por mais que Creative Strategy tenha um foco grande na inovação, definitivamente esse é um prêmio para estrategistas. Alguns motivos nos levam a acreditar nisso:

I – Dos 10 jurados, 9 eram planejadores ou tinham um background em planejamento. E o único jurado que não era planejador trabalhava em consultoria.

II – Dos 22 prêmios distribuídos na categoria, 20 deles continham um deck de apoio que explicava toda a estratégia da campanha, ao contrário dos boards criativos resumidos, tão populares em Cannes.

III – Cases que se deram bem foram aqueles onde a diferença aconteceu na estratégia, não na criação.

https://www.youtube.com/watch?v=UYcdZhJz0cw

Volvo – Project E.V.A

O GP da categoria foi para um case que nasceu como um tradicional briefing de segurança, plataforma essa que está ancorada no propósito de Volvo e que a marca ativa em diferentes frentes por longos anos. Mas o toque mágico que tornou esse projeto em algo realmente ambicioso e especial foi o novo olhar atento e fresco para dados que já existiam e estavam lá sem uma análise com a lente dos temas contemporâneos como igualdade de gêneros na hora de se pensar em segurança. Sim, os parâmetros dos bonecos de testes sempre foram embasados em padrões exclusivamente masculinos. 

A beleza e grandeza desse caso pelo que foi comentado por outros estrategistas que acompanharam a premiação está na maneira como a marca deixa um legado para a sociedade além do insight em si. Além de pensar fora do próprio umbigo, a marca convida toda a indústria automobilística a participar desse movimento de mudanças em prol da segurança quando simplesmente abre a patente e todos dados sigilosos dos estudos para que todos os seu concorrentes possam fazer algo. 

Amanda Feve, jurada da categoria, nos revelou que muitos cases que tinham méritos criativos perderam espaço por serem mais frágeis na estratégia.

“Este é definitivamente um prêmio estratégico. Havia muita confusão nisso porque muitas pessoas pensavam que poderiam reciclar seus cases de outras categorias e impressionar os estrategistas como eles normalmente impressionariam os criativos. Conheça o seu público. Uma audiência de estrategistas é diferente de uma audiência de criativos. Enfoque a história, os resultados e todo o seu caso no desafio e no insight. A entrega criativa não é a protagonista.”

#3 – Uma categoria que já nasceu bastante competitiva.

Algumas pessoas nos revelaram que decidiram inscrever seus cases em Creative Strategy esse ano pois, como era a estreia da categoria, talvez encontrariam menos competição. O fato é: essa janela de “categoria-vazia” nunca existiu. Em 2019, 837 cases foram inscritos em Creative Strategy. Um número bastante próximo de categorias bastante concorridas, como:
Radio & Audio – 974
Mobile – 864
Entertainment – 826
Digital Craft – 795

#4 – Quem ganhou em Creative Strategy, levou mais leões para casa:

Uma estratégia inovadora tem o potencial de elevar o trabalho criativo e os resultados de qualquer case. A prova disso foi a capacidade dos cases ganhadores de Creative Strategy levarem outros leões para casa. Foram distribuídos 22 leões em Creative Strategy. Desses 22, 20 também conquistaram prêmios em outras categorias do festival. Em média, os cases premiados em Creative Strategy ganharam 8.22 leões no festival, considerando todas as categorias.

E ainda tivemos 3 cases premiados em Creative Strategy que levaram GPs e Titanium em outras categorias:

Libresse – Viva la Vulva
Ouro em Creative Strategy e Titanium 

Nike – Dream Crazy  
Bronze em Creative Strategy –  2 Grand Prix em Outdoor e Entertainment, além do Titanium.

https://www.youtube.com/watch?v=lie8ds_44aU

Ikea – Thisables 
Bronze em Creative Strategy e 1 Grand Prix em Health

#5 – Os grandes temas de Cannes também estiveram presentes em Creative Strategy:

Em 2019, causas sociais e o impacto de marcas na sociedade tiveram um grande protagonismo em Cannes, seja nas palestras, seja nos trabalhos celebrados. Em Creative Strategy, não foi diferente. Vários cases premiados focaram no impacto social que marcas podem gerar.

Amanda Feve, jurada da categoria, revelou que não existiu nenhum direcionamento do festival sobre essa questão. E mais: garantiu que o júri estava de olhos atentos para cases que se apoiavam em causas sociais mas não traziam grandes transformações para as marcas envolvidas.

“O fato de darmos prêmios a muitos casos com causas sociais tem a ver mais com o papel das marcas na sociedade moderna. Mas algo que tínhamos em mente era que não queríamos reconhecer com méritos marcas que apontam questões sociais apenas por uma questão de oportunidade, tinha que estar conectado com sua marca e seu produto”.

Kingo é um exemplo do que estamos falando. Não se trata de uma ação de “causa social” isolada ou de levantar uma bandeira em torno de uma oportunidade, mas o quanto um insight é poderoso o suficiente para gerar um novo modelo de negócio. Se as pessoas já utilizam o modelo pré-pago para telefone, televisão e internet, porque ainda não utilizam esse modelo para comprar energia elétrica? Este foi um dos dois casos latinos reconhecidos com méritos na categoria e levou um Leão de Prata. 

#6 – Dados são bem-vindos. Mas o importante é o que eles revelam.

Várias pessoas que trabalham com BI nos perguntaram se eles também poderia inscrever cases e se o festival estava aberto a campanhas que nasceram de uma análise de dados. Podemos dizer que, sem dúvida alguma, a categoria abraça estratégias bem embasadas por dados. Mas é também preciso fazer um aviso: os dados em si não vão conquistar os jurados. O que importa é a interpretação deles o que eles revelam.

“Os dados são definitivamente relevantes e uma ferramenta poderosa para essa categoria, mas, novamente, muitos estudos de caso só tinham dados para dizer que eles tinham alguma coisa de dados dentro dele. É tudo sobre a interpretação dos dados, como é usado e o que revela.”

Rua Vieja – Tenemos que vernos más

O licor Rua Vieja foi ganhador de ouro na categoria Creative Strategy ao utilizar de maneira espetacular os dados na estratégia para traduzir a sua ocasião de consumo e o papel que tem na vida das pessoas. Ao construir uma calculadora e permitir que as pessoas colocassem seus dados pessoais da quantidade de vezes que viram seus amigos nos últimos anos e sua idade atual, a marca de licor fazia uma provocação a assustadora quantidade de horas que restavam no relacionamento dessas pessoas se elas mantivessem essa frequência de encontros ocasionais. Um experimento social de 4 minutos e meio gerado a partir de dados se tornou a publicidade mais vista na história da Espanha no Youtube. 

Aeromexico – A world without borders

A companhia Aeromexico levou prata com uma ativação que gerou um enorme awareness e consideração para a companhia a partir de uma documentação de diferentes tipos de reações e tocando em uma ferida cultural escancarada. Apesar de fazer o uso inteligente dos dados para demonstrar a força de um insight em meio a uma tensão sociocultural (muitos americanos amam promoções e descontos, mas o mesmo frenesi não acontece quando o assunto é relacionado ao México), a campanha gerou mais alcance e buzz do que impacto social e engajamento na vida das pessoas. Porém a marca demonstrou que mesmo com um budget curto, a estratégia foi relevante o suficiente para traduzir seu posicionamento e alavancar a marca em curtíssimo prazo para um melhor cenário. 

#7 – Atenção e cuidado com os materiais.

Como esse foi o primeiro ano da categoria, logo, é natural que houvessem dúvidas sobre quais materiais deveria ser enviados e como eles deveriam ser construídos. Amanda Feve, jurada da categoria, nos revelou que os jurados sentiram que algumas pessoas não sabiam direito como mandar os seus materiais, mas também disse que muitos simplesmente não se dedicaram tanto quanto deveriam.

“Claro que há uma curva de aprendizado para o que você envia, mas por favor não seja preguiçoso! Há muitos cases que acabaram enviando apenas um board ou decks totalmente desleixados. Crie e trabalhe em cima de sua inscrição. Não deixe os outros fazerem isso por você. Lembre-se que precisa ser incrível, deve ficar claro, mostrar que foi bem pensado e finalizado com excelência.”

Quanto a ordem de apresentação dos materiais, Amanda disse que o júri lia primeiro o resumo da ficha de inscrição, depois assistia os videocase e, por último, lia os decks de apoio.

#8 Creative Effectiveness x Creative Strategy – Não se confunda com essas duas categorias.

Uma bandeira que muitos planners levantam na hora de defender qualquer tipo de premiação da qual deveriam participar ou não é a tal da Efetividade. Mas essa categoria apesar de olhar para a efetividade com bastante carinho (vide os 20% no peso da avaliação), ela não é uma premiação sobre “Eficácia Estratégica”. O que está em jogo aqui são outros olhares.

A própria descrição de Creative Effectiveness é bem clara quanto ao seu propósito diferente de Creative Strategy. 

“Os Leões de Eficácia Criativa celebram o impacto mensurável da criatividade. Trabalho que demonstra resultados sólidos a longo prazo; isto é, como o trabalho gerou efeitos comerciais tangíveis, foi fundamental para a mudança cultural ou integral na conquista da finalidade da marca”

“O Leão de Estratégia Criativa celebrará a ideia por trás da ideia, como o planejamento estratégico pode redefinir uma marca, reinventar seus negócios e influenciar os consumidores ou a cultura mais ampla.” – exatamente o que as marcas com visão de futuro estão tentando fazer –  não apenas visando aumentar a sua participação e vendas a curtíssimo prazo, mas construindo sua influência e suas conexões com os consumidores.

Dicas práticas para 2020 e para os próximos anos.

Com isso em mente, essas são algumas dicas práticas que daríamos para estrategistas que querem competir em Creative Strategy em 2020.

I – Traga verba e chame a responsa para o seu centro de custo.

Como vimos acima, Creative Strategy é uma categoria que pede um foco diferente das demais categorias e não pode ser tratada como só mais uma inscrição. É preciso pensar e produzir materiais únicos para essa categoria e esse processo será bem mais fácil se o estrategista tiver controle da verba para inscrever e produzir esses cases.

II – Pergunte para si mesmo, qual foi o poder transformador do seu case para a categoria que ele faz parte e sobretudo para a pessoa que dá vida ao consumidor do seu powerpoint?

Creative Strategy nasceu para celebrar pensamentos estratégicos inéditos que transformam categorias, seja através da comunicação, produto ou modelo de negócio. Tenha isso em mente na hora de escolher qual case inscrever.

III – Não recicle suas inscrições, escreva como um estrategista para estrategistas.

Um júri de estrategistas pensa diferente de um júri de criativos. Escreva seu case com a cabeça de um estrategista, foque no desafio e em como o pensamento estratégico mudou o jogo. É claro que o trabalho criativo é extremamente importante, mas, lembre: o foco é a estratégia e como ela transformou o trabalho. Vale para a ficha de inscrição, o deck de apoio e o videocase.

IV – Contexto, contexto, contexto. Você pode explicar o que é samba através de uma foto do Getty Images ou contando sobre a importância que o carnaval tem na vida do brasileiro. 

Em 2019, nenhum dos jurados era da América Latina. Isso não necessariamente é um obstáculo para cases do Brasil, mas pode ser muito arriscado não trazer um contexto cultural para ajudar o júri a enxergar os méritos do seu trabalho quando uma das coisas mais valorizadas é o impacto sociocultural por trás do insight.

V – O Keynote é seu amigo e nada te faltará. Garanta a sua existência, mas vá com parcimônia.

Atenção aos materiais: 20 dos 22 leões da categoria mandaram um deck de apoio explicando a sua estratégia. Você tem menos chances de ganhar se mandar só um board-resumo como em outras categorias. Apesar de não existir um formato padrão para esses decks de apoio, os vencedores não fugiram da estrutura:  Contexto, desafio, imersão, insight, estratégia, ideia criativa, implementação, resultados. Pense em slides para serem lidos, não apresentados, e seja preciso nas palavras: os vencedores não usaram mais de 10 slides para construir seus decks.

Se ficou alguma dúvida ou se você deseja fazer o aprofundamento em algum caso, escreva para nós: [email protected] e [email protected].